quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Conselho Nacional de Justiça admite o cancelamento administrativo de matrículas irregulares de imóveis.

Um grande passo para defesa das terras públicas
http://jus.com.br/revista/texto/17585
Publicado em 10/2010
Rompe-se o dogma de que é necessário provocar a jurisdição para cancelar registro ou matrícula de imóvel em razão de defeito essencial do título.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000. Um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem. 3. Da competência do Juízo administrativo para cancelar matrículas irregulares. 4. Conclusão. Referências.

1. Introdução.

No final do mês de agosto do ano em curso, uma decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que, nos autos do Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, determinou o cancelamento de 5,5 mil títulos irregulares no Estado do Pará (SELIGMAN; ANGELO, 2010), possivelmente fruto de grilagem de terras públicas, tem sido objeto de comentários no meio jurídico e também no meio não-jurídico. [01]
A decisão é emblemática, não só pela defesa do patrimônio público brasileiro, mas também, por acabar com um dogma que vinha sendo sustentado pelo Poder Judiciário com certa freqüência: o de que sempre é necessário provocar a jurisdição para cancelar registro ou matrícula de imóvel em razão de defeito essencial do título (cláusula de reserva de jurisdição).
O Corregedor Nacional de Justiça, Ministro GILSON DIPP, analisou com extrema profundidade a questão, não deixando, assim, qualquer margem para manutenção da tese de que somente no âmbito jurisdicional é possível cancelar registros de imóveis amparados em títulos nulos de pleno direito.
Dessa forma, cumpre enaltecer a referida decisão e, ao mesmo tempo, tecer breves comentários sobre um tema de extrema relevância para a tutela constitucional dos bens públicos.

2. O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000. Um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem.

Conforme mencionado, o julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000, culminou por derrubar um dogma na jurisprudência pátria, de que somente através da jurisdição [02] é possível cancelar registro ou matrícula vinculada a título nulo de pleno direito.
No caso em questão, diversos entes públicos e privados [03] levaram ao conhecimento do Conselho Nacional de Justiça a situação verificada pela Comissão de Estudo e Monitoramento das Questões Ligadas à Grilagem de Terras no Estado do Pará, nos cartórios de registro de imóveis das comarcas do interior do Estado. O referido estudo apurou que a área grilada no Brasil beira os cem milhões de hectares, dentre os quais trinta milhões se localizam no Estado do Pará.
Em síntese, os requerentes se insurgiram contra o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Pará que, ao enfrentar o problema:
Posicionou-se pela impossibilidade de cancelamento administrativo das matrículas nulas de pleno direito, de que trata a Lei nº 6739/1979, que prevê hipótese de providências administrativas, com respeito ao devido processo legal e ampla defesa, para o cancelamento de matrículas irregulares, entendimento que foi ratificado na 1ª Sessão Extraordinária do Conselho da Magistratura realizado no dia 19.03.2009. [04]
Amparado em precedentes do próprio CNJ, [05] a tese da cláusula de reserva de jurisdição foi afastada com base nos seguintes argumentos:
1º Registro baseado em suposto título que formalmente deixou de existir, é hipótese que se enquadra no exemplo de inexistência do título, passível de cancelamento em sede administrativa;
2º As partes interessadas – prejudicadas com o cancelamento administrativo dos títulos – dispõem de ação anulatória para atacar o ato, a ser proposta perante o juiz competente contra a pessoa jurídica de direito público que requereu o cancelamento, nos termos do art. 3º da Lei n. 6.739/79;
3º A possibilidade da controvérsia sobre o domínio estar em discussão no âmbito judicial não importa em obstáculo à atuação da Corregedoria, tendo em vista a independência de que gozam as esferas administrativa e judicial;
4º A Lei n. 10.267/2001, que possibilitou o cancelamento administrativo de matrículas irregulares, veio exatamente para obstar a prática de grilagem, pois até então, a legislação vigente era supostamente insuficiente para proteger o patrimônio da União;
Mas a decisão do CNJ exarada no Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000 foi além dos argumentos utilizados nos precedentes anteriores daquele órgão. Admitindo que os referidos precedentes não deram "a devida saliência aos fundamentos que lhe abonam a tese, não os explicitaram adequadamente ou não os exploraram com a exigível profundidade", o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro GILSON DIPP, decidiu "expor e reiterar à exaustão" o assunto. [06]
Não se pretende, aqui, fazer uma análise exauriente sobre todos os fundamentos utilizados pelo Ministro GILSON DIPP, visto que estaríamos fugindo do objetivo da presente exposição. Diante da percuciente exposição e clareza dos argumentos utilizados, basta uma leitura da referida decisão para que se possa ter um bom entendimento sobre a questão.
De todo modo, a referida decisão consagra duas importantes premissas sobre o assunto, necessariamente ligadas entre si, quais sejam:
A possibilidade do cancelamento administrativo das matrículas irregulares, que já era previsto na Lei n. 6.739/79, mas não era admitido por ampla corrente jurisprudencial e doutrinária;
Diante do regime jurídico constitucional dos bens públicos (art. 20 e parágrafos da Constituição, para a União, e art. 26, para os Estados), cabe ao particular a prova de seu domínio, pelo que a falta ou incompleta demonstração desse fato implica na recusa formal e substancial ao reconhecimento da legitimidade do domínio particular.
A consagração do entendimento de que é possível cancelar administrativamente as matrículas irregulares representa um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem. Com efeito, é fato público e notório que o acesso ao Judiciário é sempre demorado e custoso, sendo necessário um mecanismo mais célere e adequado para tutela dos bens públicos indevidamente registrados em nome de particulares, o que ocorre com a atividade meramente administrativa dos Cartórios e Corregedoria, ao procederem o cancelamento de matrículas criadas com amparo em título nulo de pleno direito.
Sobre a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares é que nos dedicaremos com maior profundidade, com vistas a ratificar o entendimento firmado pelo Conselho Nacional de Justiça sobre o assunto.

3. Da competência do Juízo administrativo para cancelar matrículas irregulares.

ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (1996, pp. 18-20) faz uma clara distinção entre a atividade jurisdicional e a atividade administrativa. Ressaltando que "a distinção não será certamente encontrada pelo critério subjetivo ou orgânico (de quem praticou o ato), pois os juízes também praticam atos administrativos", [07] o referido autor apresenta o seguinte esquema de distinções entre as duas atividades estatais:
Ato JurisdicionalAto Administrativo
A atividade jurisdicional depende de "iniciativa da parte interessada", mediante o ajuizamento de "ação" (ubi non est actio ibi non est jurisdictio).A atividade administrativa normalmente não depende de requerimento do interessado, agindo, portanto, "de ofício".
A "aplicação da lei" a uma pretensão é o "objetivo", em si mesmo, da atividade jurisdicional; é a razão de ser da jurisdição.A administração, conquanto deva agir em conformidade com a lei, aplicando a lei, tem por "objetivo" a promoção do "bem comum".
A atividade jurisdicional pressupõe como causa um litígio, uma "lide" (ainda que virtual), para cuja eliminação é aplicada a lei.A atividade administrativa visa satisfazer necessidades individuais e coletivas, não tendo por pressuposto a existência de uma lide entre partes.
A atividade jurisdicional reveste-se (segundo Chiovenda) normalmente do caráter de atividade de "substituição".A atividade administrativa é "atividade primária" ou originária.
A jurisdição atua sempre "processualmente", sob as regras da dualidade de partes e do contraditório, para apreciar conflitos "alheios" (o juiz julga in re aliena).A administração geralmente age informalmente, embora deva organizar procedimentos, com ritos previstos em lei, para prover acerca de certos assuntos em que a própria administração é parte interessada (prover in re sua).
O ato jurisdicional de composição da lide (sentença de mérito) adquire a "autoridade de coisa julgada", ou seja, seus efeitos tornam-se imutáveis.As decisões administrativas podem apenas precluir no âmbito da administração (não admitem recurso administrativo), mas estão sujeitas, sem exceção, quanto à sua legalidade, ao reexame pelo Judiciário.
Observe-se que o procedimento de cancelamento de matrículas amparadas em títulos nulos de pleno direito reveste-se de todos os traços de uma atividade meramente administrativa, conforme exposição acima transcrita:
1º Não depende de requerimento do interessado, podendo o Juiz agir "de ofício";
2º Tem por objetivo a promoção do bem comum, caracterizado pela preservação do patrimônio público;
3º Visa satisfazer necessidades individuais e coletivas, extirpando do sistema o registro irregular, sem que necessariamente exista uma lide entre partes;
4º Pode ser considerada uma atividade primária, pois o Juiz, ao cancelar registro ou matrícula irregulares, não atua como substituto das partes (terceiro imparcial);
5º Possui procedimento que, embora simplificado, seu rito está expressamente previsto em lei (Leis ns. 6.015/73 e 6.739/79);
6º A decisão administrativa está sujeita ao reexame pelo Judiciário, inclusive a própria legislação de regência prevê a hipótese de ação anulatória para desconstituir o ato administrativo de cancelamento do registro (art. 3º da Lei n. 6.739/79).
De fato, a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares está expressamente prevista na Lei n. 6.739/79, que assim dispõe:

Art. 1º - A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao corregedor-geral da justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com os artigos 221 e segs. da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975.
§ 1º - Editado e cumprido o ato, que deve ser fundamentado em provas irrefutáveis, proceder-se-á, no qüinqüídio subseqüente, à notificação pessoal:
a) da pessoa cujo nome constava na matrícula ou no registro cancelados;
b) do titular do direito real, inscrito ou registrado, do imóvel vinculado ao registro cancelado.§ 2º - Havendo outros registros, em cadeia com o registro cancelado, os titulares de domínio do imóvel e quem tenha sobre o bem direitos reais inscritos ou registrados serão também notificados, na forma prevista neste artigo.
§ 3º - Inviável a notificação prevista neste artigo ou porque o destinatário não tenha sido encontrado, far-se-á por edital:
a) afixado na sede da comarca ou do Tribunal de Justiça respectivos; e
b) publicado uma vez na imprensa oficial e três vezes, e com destaque, em jornal de grande circulação da sede da comarca, ou, se não houver, da capital do Estado ou do Território.
§ 4º - O edital será afixado e publicado no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data em que for cumprido o ato do corregedor-geral.
Art. 2º - A retificação de registro sempre será feita por serventuário competente, mediante despacho judicial, como dispõe o art. 213 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975, e, quando feito em livro impróprio, será procedida por determinação do corregedor-geral, na forma do art. 1º.
Art. 3º - A parte interessada, se inconformada com o provimento, poderá ingressar com ação anulatória, perante o juiz competente, contra a pessoa jurídica de direito público que requereu o cancelamento, ação que não sustará os efeitos deste, admitido o registro da citação, nos termos do art. 167, I, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975.
Parágrafo único. Da decisão proferida, caberá apelação e, quando contrária ao requerente do cancelamento, ficará sujeita ao duplo grau de jurisdição. (grifos nossos).
De fato, tratando-se de nulidade de pleno direito, cabe ao Juízo declará-la de ofício, independentemente de qualquer ação judicial. O efeito próprio do reconhecimento da nulidade do título é o cancelamento da matrícula e registro que dele se originou, o que se dará na própria esfera administrativa, resguardado as vias judiciais para aqueles que forem prejudicados com o cancelamento.
Nesse sentido, aliás, já dispunha a Lei Geral de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), [08] consoante se observa in litteris:
"Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta. (Renumerado do art. 215 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
§ 1º A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 2º Da decisão tomada no caso do § 1º caberá apelação ou agravo conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 3º Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 4º Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 5º A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)"
A referida Lei de Registros Públicos, por sua vez, estabelece que o cancelamento dar-se-á nas seguintes hipóteses:
"Art. 250 - Far-se-á o cancelamento: (incluído pela Lei nº 6.216, de 1975)
I - em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado;
II - a requerimento unânime das partes que tenham participado do ato registrado, se capazes, com as firmas reconhecidas por tabelião;
III - A requerimento do interessado, instruído com documento hábil.
IV - a requerimento da Fazenda Pública, instruído com certidão de conclusão de processo administrativo que declarou, na forma da lei, a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso de imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, e a reversão do imóvel ao patrimônio público. (Incluído pela Lei nº 11.952, de 2009)"(destaques nossos).
O inciso I do art. 250 faz menção a cumprimento de "decisão judicial". Como visto acima, decisão judicial pode decorrer de uma atividade jurisdicional, mas também pode ser decorrente de uma atividade administrativa. Logo, é perfeitamente possível o cancelamento do registro com base em decisão de juiz em processo administrativo.
Compartilhando desse entendimento, AFONSO FRANCISCO CARAMURU expõe o seguinte:
Da mesma forma, a expressão "decisão judicial", pela sua amplitude, abarca não só as manifestações jurisdicionais do juiz, como também as exaradas nos procedimentos administrativos, em que o juízo corregedor permanente, controlador da legalidade dos atos do registrador, agindo como mero administrador, e, portanto, inclusive sponte sua e ex officio, também determina o cancelamento de algum ato de registro que, na sua atividade fiscalizadora, demonstra ser espúrio ou ilegal.
(...)
Verificando o juiz responsável pela fiscalização dos atos registrários que há irregularidades e erronias, poderá determinar o cancelamento do mesmo, mediante decisão exarada em devido processo legal, que não abrange os autores do título causal, pois não se cuida deste em sede de cancelamento, como já se disse, sendo tal decisum, ainda que não exarado em procedimento contencioso jurisdicional, título hábil, também, para dar fulcro a um cancelamento. [09]
Ademais, observe-se que o inciso IV do art. 250 da Lei n. 6.015/73, incluído pela recente Lei nº 11.952/2009, autoriza que o cancelamento seja feito "a requerimento da Fazenda Pública, instruído com certidão de conclusão de processo administrativo que declarou, na forma da lei, a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso de imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, e a reversão do imóvel ao patrimônio público" (grifos nossos), prestigiando, assim, mais uma vez, o processo administrativo como instrumento apto à prática de tal ato.
A despeito da legislação transcrita acima, a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares encontra (ou encontrava) resistência na mais abalizada doutrina [10] e em diversos precedentes judiciais. A principal tese sustentada por essa corrente é a de que o cancelamento administrativo violaria o contraditório e ampla defesa assegurados pela Carta Magna (art. 5º, LV, da CF/88).
Contudo, com a devida vênia àqueles que sustentam essa tese, a assertiva não prospera. Ora, o próprio art. 5º, LV, da CF/88 prevê que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;" (grifos nossos).
Logo, sustentar que o cancelamento administrativo do registro irregular implica em violação ao contraditório e ampla defesa é o mesmo que afirmar que em processo administrativo tais garantias não são respeitadas, o que a toda evidência não procede. Se isto realmente acontecesse, teríamos que admitir que exista um garantia constitucional destituída de eficácia, o que vai de encontro a toda uma teoria de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, em especial ao princípio da máxima efetividade, pelo qual, à norma constitucional, especialmente a que define direitos e garantias fundamentais, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. [11]
Também entendendo que o cancelamento administrativo não implica em ofensa aos postulados do contraditório e da ampla defesa, AFONSO FRANCISCO CARAMURU leciona o seguinte:
A expressão "independentemente de ação direta" é a própria admissão do cancelamento administrativo ou correcional, na medida em que prescinde a existência de uma demanda deduzida em juízo a ser conhecida pelo órgão jurisdicional para que se tenha o cancelamento.
O juízo a quem se atribui o controle da legalidade dos atos de registro, atribuição que, hodiernamente, decorre de mandamento constitucional, pode e deve, diante do conhecimento de nulidade do ato de registro, promover-lhe o cancelamento, ex officio ou mediante prévia oitiva do oficial de registro e do órgão do Ministério Público, em procedimento administrativo, sem que, para tanto, tenha de se instaurar um processo jurisdicional.
Em virtude disto, não há que se falar, nesta hipótese, em prévia audiência dos participantes do título causal ou de eventuais interessados em virtude deste título causal, porquanto não se tem, em tais casos, senão análise do próprio ato do registro, no qual os participantes do título causal não fizeram parte, nem podem fazê-lo.
Eis o motivo pelo qual se tem sistematicamente afastado a alegação de que a não intervenção das partes no título causal em tais procedimentos administrativos viola o princípio do contraditório e da ampla defesa. (grifos nossos). [12]
De fato, ao contrário do que se sustenta, da leitura da legislação supra citada, verifica-se que existe um procedimento administrativo próprio para anulação do registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, onde inclusive é assegurada a ampla defesa e contraditório da pessoa cujo nome constava na matrícula ou no registro cancelados (art. 1º, § 1º, "a" da Lei n. 6.739/79), prevendo até mesmo a participação do titular do direito real, inscrito ou registrado, do imóvel vinculado ao registro cancelado (art. 1º, § 1º, "b").
Ainda, prevê a citada Lei n. 6.739/79 que, havendo outros registros, em cadeia com o registro cancelado, os titulares de domínio do imóvel e quem tenham sobre o bem direitos reais inscritos ou registrados serão também notificados (art. 1º, § 2).
Além da oportunidade do contraditório aos titulares do domínio do imóvel e terceiros interessados, observa-se, ainda, que a Lei de Registros Públicos assegura aos prejudicados o direito de interpor recurso (agravo ou apelação) contra a decisão que determina o cancelamento da matrícula ou registro irregular (art. 214, § 2º).
Se isso não fosse o bastante para se assegurar o direito a ampla defesa e contraditório na forma prevista pelo art. 5º, LV, da CF/88, veja que a própria Lei n. 6.739/79 prevê a possibilidade do ajuizamento de ação anulatória para desconstituir o ato administrativo de cancelamento do registro (art. 3º da Lei n. 6.739/79), resguardando, portanto, o reexame da matéria pelo Poder Judiciário. Ou seja, o sistema faz uma escolha daquele que deverá provocar o Judiciário, que será o suposto prejudicado com o ato administrativo de cancelamento do registro.
Assim não poderia deixar de ser, pois conforme foi exposto acima, uma das características da atividade administrativa é a inexistência de uma lide entre partes. Ou seja, pode ocorrer uma situação em que, mesmo tendo o órgão público ou o particular conhecimento da nulidade de pleno direito de um título ou registro, ainda assim não existirá o interesse em propor uma ação judicial para obter esse reconhecimento, em razão do domínio do imóvel não lhe pertencer, mesmo que o título e o registro respectivo sejam cancelados.
Para melhor entendimento da questão, vale mencionar um exemplo prático o qual nos deparamos:
Uma das atribuições do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA é analisar a regularidade da aquisição de terras rurais por estrangeiros, conforme prescrições contidas na Lei nº 5.709/71 e no Decreto nº 74.965/74.
Uma vez reconhecida a irregularidade dessa aquisição, cabe ao INCRA comunicar à Corregedoria a nulidade de pleno direito da transação, conforme prevê o art. 15 da Lei nº 5.709/71, [13] para fins de responsabilização dos oficiais de cartório que praticaram o ato e, também, para que aquele órgão proceda ao cancelamento das escrituras públicas de compra e venda e respectivos registros, nos termos do art. 1º da Lei n. 6.739/79.
Ora, numa situação como esta, o INCRA sequer tem interesse de agir (art. 6º do CPC) para propor ação judicial de anulação de registro de matrícula de terras particulares. Ao INCRA somente compete o dever de comunicar à Corregedoria-Geral de Justiça a aquisição irregular de imóvel rural pelo estrangeiro, nos termos do 1º da Lei n. 6.739/79 c/c art. 15 da Lei nº 5.709/71, a fim de que este órgão tome as providências administrativas cabíveis para desfazer o ato administrativo nulo e responsabilizar os agentes que o praticaram.
Ao prevalecer o entendimento de que somente através da jurisdição será possível o cancelamento, o registro nulo se perpetuará, uma vez que o INCRA não tem interesse de agir em ajuizar ação para anular o ato de aquisição irregular de imóvel particular, o que acabará por conturbar, ainda mais, a cadeia dominial do imóvel em questão, prejudicando terceiros de boa fé que venham a adquiri-lo.
Nesse contexto, não se pode perder de vista que o cancelamento "torna-se poderoso instrumento e mecanismo de sanação do sistema e, por via de conseqüência, veículo dos mais eficazes e ágeis para a regularização fundiária" (CARAMURU, op.cit., p. 254).Por esse motivo, "o ordenamento jurídico está a exigir uma ação decisiva dos órgãos controladores da legalidade, a fim de conferir credibilidade a um real sistema que esteja em consonância com a principiologia legal." [14]
Portanto, verifica-se que existe toda uma lógica do sistema registral ao prever a competência do juízo administrativo para, por meio da Corregedoria-Geral de Justiça, cancelar registros de títulos nulos de pleno direito, não havendo, por sua vez, qualquer justificativa plausível para recusa de aplicação de tais normas especiais (Leis ns. 6.015/73 e 6.739/79).
Tal lógica resulta, como se disse, do regime jurídico-constitucional da administração das terras públicas federais ou estaduais que, conforme foi bem ressaltado pelo Ministro GILSON DIPP, impõe "ao administrador tomar todas as iniciativas suficientes e necessárias para a proteção dos bens públicos", [15]tal como a adoção das medidas de ordem administrativas destinadas a cancelar registros vinculados a títulos nulos de pleno direito.
De fato, sob essa perspectiva constitucional, considerando que compete ao Poder Judiciário o controle da legalidade dos atos de registro (art. 236, § 1°, da CF/88), pode e deve o juiz, diante do reconhecimento da nulidade do ato do registro, promover-lhe o cancelamento, em procedimento administrativo próprio, sem que seja necessário instaurar um processo jurisdicional.
Nesse sentido, frise-se que a idéia moderna de legalidade repudia essa visão estreita da atividade administrativa, calcada apenas na análise da legislação infraconstitucional, devendo, também, se ater aos valores que informam o ordenamento jurídico como um todo, em especial àqueles previstos nas disposições constitucionais.
Evoluiu-se para se considerar a Administração Pública vinculada não apenas à lei, mas a todo um bloco de legalidade, que incorpora os valores, princípios e objetivos jurídicos maiores da sociedade, com diversas Constituições (por exemplo, a alemã e a espanhola) passando a submeter a Administração Pública expressamente à `lei e ao Direito', o que também se infere implicitamente da nossa Constituição e expressamente da Lei de Processo Administrativo Federal (art. 2º, Parágrafo Único, I). A esta formulação dá-se o nome de Princípio da Juridicidade ou da legalidade em sentido amplo. Note-se que esta formulação é uma via de mão dupla: serve tanto para restringir a ação da Administração Pública não apenas pela lei, mas também pelos valores e princípios constitucionais, como para permitir a sua atuação quando, mesmo diante da ausência de lei infraconstitucional específica, os valores da Constituição (lei constitucional) impuserem a sua atuação (grifos nossos). [16]
Registre-se, por fim, que embora sem a mesma magnitude dos fundamentos adotados no Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, existem precedentes anteriores do Superior Tribunal de Justiça que abonam a tese da competência do Juízo administrativo para cancelar registros imobiliários irregulares, cujas ementas se transcreve a seguir:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CANCELAMENTO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. NATUREZA ADMINISTRATIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
1 - Consoante entendimento pacificado desta Corte, não existindo lide, compete ao Juízo de Direito corregedor processar e julgar o pedido de cancelamento de registros imobiliários, não importando se este foi formulado por ente federal, porquanto a questão é de natureza meramente administrativa. Precedentes.
2 - Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo da Vara de Feitos Criminais, Júri, Menores, Fazenda Pública e Registros Públicos de Bom Jesus da Lapa/BA, o suscitado."
(CC 31.046/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/06/2003, DJ 30/06/2003 p. 126)
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – CANCELAMENTO DE REGISTRO IRREGULAR DE IMÓVEL RURAL – CORREGEDORIA DE JUSTIÇA – REQUERIMENTO DO INCRA - AUSÊNCIA – ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER.
O cancelamento de registro irregular de imóvel rural procedido pela Comissão de Correição da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, instituída a requerimento do INCRA com supedâneo na Lei n.º 6.739/90, não constitui ilegalidade ou abuso de poder.
Destarte, merece ser mantida a decisão que denegou o mandado de segurança.
Recurso ordinário improvido."
(RMS 17.436/AM, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 29/06/2004, DJ 09/08/2004 p. 267)
REGISTRO PUBLICO. IRREGULARIDADE. E CANCELAVEL A INSCRIÇÃO, INDEPENDENTEMENTE DE AÇÃO DIRETA. LEI NUM. 6.015/73, ART. 214.
SUMULA 474/STF. SEGURANÇA DENEGADA. RECURSO ORDINARIO NÃO PROVIDO.
(RMS 6.549/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/1997, DJ 14/04/1997 p. 12734)
Portanto, por todos os ângulos que se vislumbre, seja analisando a legislação infraconstitucional ou constitucional, seja considerando o entendimento doutrinário e jurisprudencial existente, o cancelamento administrativo de registros amparados em títulos nulos de pleno direito não só é possível, como também é prestigiado pelo ordenamento jurídico pátrio.

4. Conclusão.

O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000 representa um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem, pois culminou num cancelamento estimado de 5,5 mil títulos irregulares no Estado do Pará.
Não bastasse esse nobre resultado, o referido precedente também acabou por derrubar um dogma na jurisprudência pátria, de que somente através da jurisdição é possível cancelar registro ou matrícula vinculada a título nulo de pleno direito.
Ao contrário do que sustentava a doutrina e jurisprudência anterior a decisão do CNJ, o cancelamento administrativo de registros amparados em títulos nulos de pleno direito não só encontra amparo legal (Leis ns. 6.015/73 e 6.739/79), como também resulta do regime jurídico-constitucional da administração das terras públicas federais ou estaduais, o qual o Poder Judiciário tem obrigação de tutelar (art. 236, § 1°, da CF/88).
Com a decisão do Ministro GILSON DIPP no Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, espera-se que outros julgados semelhantes surjam perante os tribunais nacionais, dando, assim, a devida primazia que o tema da tutela constitucional dos bens públicos merece.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Roberto. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. In: "A concepção pós-positivista do princípio da legalidade", Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, n. 236, abr./jun. 2004.
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, Corregedoria, Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000, Relator: Min. Gilson Dipp, Diário da Justiça Eletrôniconº 154/2010, DF. 24 agosto, 2010, pp. 8-17, DESP 28.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Segunda Seção, CC 31.046/BA, Relator: Min. Fernando Gonçalves, Diário da Justiça, DF. 30 jun. 2003, p. 126.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, RMS 17.436/AM, Relator: Min. Castro Filho, Diário da Justiça, DF. 09 agosto, 2004, p. 267.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, RMS 6.549/SP, Relator: Min. Nilson Nalves, Diário da Justiça, DF. 14 abr. 1997, p. 12734.
CARAMURU, Afonso Francisco. Do Registro de Imóveis e seu Cancelamento. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 1996.
CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. São Paulo: Saraiva, 1997.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Sistema de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 1997.
SELIGMAN Felipe; ANGELO, Claudio. "CNJ cancela 5,5 mil registros de terras no Pará". Folha de São Paulo. Coluna Poder.20 de agosto, 2010. São Paulo.

Notas

  1. Além da notícia referida acima, a decisão foi noticiada em inúmeros periódicos do país, tais como, Folha de São Paulo ("União usará decisão do CNJ para reaver terras no país", em 21.08.2010), Correio da Bahia ("Registros irregulares cancelados no Pará corresponderiam a 90% da área do estado, em 20.08.2010), Valor Econômico (" Justiça cancela 5 mil registros de terras no PA", em 20.08.2010), Jornal do Brasil ("Justiça ataca grilagem no PA", em 20.08.2010), Diário do Pará ("Comissão explica cancelamento de títulos de terras", em 20.08.2010), Diário do Amapá ("CNJ cancela cinco mil registros imobiliários supostamente irregulares no Pará", em 20.08.2010) e Tribuna do Brasil ("CNJ cancela mais de 5 mil registros de terras no Pará", em 20.08.2010).
  2. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, conceitua jurisdição como "função do Estado, destinada à solução imperativa de conflitos e exercida mediante a atuação da vontade do direito em casos concretos" (DINAMARCO, 2002, p. 309). Ainda segundo o autor, costuma-se ser atribuída uma tríplice conceituação para jurisdição, identificando-a ao mesmo tempo como um poder, uma função e uma atividade: "Na realidade, ela não é um poder, mas o próprio poder estatal, que é uno, enquanto exercido com os objetivos do sistema processual; assim como a legislação é o poder estatal exercido para criar normas e a administração, para governar. Como função a jurisdição caracteriza-se pelos escopos que mediante seu exercício o Estado-juiz busca realizar – notadamente o escopo social de pacificar pessoas, eliminando litígios. A atividade jurisdicional constitui-se de atos que o juiz realiza no processo, segundo as regras do procedimento." (op. cit., p. 297).
  3. Segundo a decisão supra citada, tais entes foram o Estado do Pará, a Procuradoria Geral do Estado, o Instituto de Terras do Pará, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual, a Advocacia Geral da União, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAGRI e a Comissão Pastoral da Terra. (BRASIL, 2010. pp. 8-17, DESP 28, p. 8.).
  4. Idem, p. 11.
  5. PP 268, PCA 840, PP 239 e PCA 457 (processos físicos) são os precedentes citados na referida decisão do CNJ (Idem, p. 12).
  6. Idem, p. 14.
  7. Ibidem, p. 18.
  8. Segundo registra AFONSO FRANCISCO CARAMURU em obra específica sobre o tema, a figura das nulidades de pleno direito do registro, que permite o cancelamento sem que se tenha a necessidade de ação para tanto, vem desde o Decreto-lei n. 370, de 02 de maio de 1890 (CARAMURU, 1999, p. 193).
  9. Op. cit., pp. 210/211.
  10. Entendendo que o ato somente pode ser praticado na via judicial, confira-se DINIZ (1997, p. 421); e CENEVIVA (1997, p. 399), este último acenando pela possível inconstitucionalidade das leis ordinárias que prevêem o cancelamento administrativo.
  11. Em sentido semelhante, ROBERT ALEXY (2002, p. 86) sustenta um "argumento de otimização" para significar que os direitos fundamentais, em razão do seu caráter principiológico, devem ser realizados na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. Nas palavras do autor, "los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado"
  12. Op. cit., pp. 235/236.
  13. "Art. 15 - A aquisição de imóvel rural, que viole as prescrições desta Lei, é nula de pleno direito. O tabelião que lavrar a escritura e o oficial de registro que a transcrever responderão civilmente pelos danos que causarem aos contratantes, sem prejuízo da responsabilidade criminal por prevaricação ou falsidade ideológica. O alienante está obrigado a restituir ao adquirente o preço do imóvel." (grifos nossos).
  14. Idem, p. 256.
  15. BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, p. 15.
  16. (ARAGÃO, 2004, p. 63).

Autor

  • Procurador Federal lotado no INCRA-RO.Especialista em Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado (2005), em Salvador-BA. Sócio efetivo da Academia Brasileira de Direito Processual Civil

Informações sobre o texto

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

FELZEMBURG, Daniel Martins. Conselho Nacional de Justiça admite o cancelamento administrativo de matrículas irregulares de imóveis. Um grande passo para defesa das terras públicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2658, 11 out. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17585/conselho-nacional-de-justica-admite-o-cancelamento-administrativo-de-matriculas-irregulares-de-imoveis>. Acesso em: 17 nov. 2011.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Necessidade ou não de escritura pública de pacto em face da alteração do Regime de Bens

O regime de bens estabelecido pelos cônjuges, para regular suas relações patrimoniais na constância do matrimônio, está erigido em três pilares básicos: a livre estipulação, a variedade de regimes e a irrevogabilidade desses.

A variedade de regimes determina, com exceção da separação obrigatória de bens, caber aos nubentes a escolha entre os modelos legais: comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aqüestos e separação de bens.


No que concerne a livre estipulação, estabelece o art. 1639 do Código Civil de 2002 ser possivel convencionar o que melhor aprouver aos cônjuges, podendo os contraentes adotar os regimes-modelos, escolher um regime misto, ou até mesmo criar um novo regime. Contudo, a livre estipulação não possui caráter absoluto, pelo que determina o art. 1.655 do NCC/02.

A respeito da irrevogabilidade do regime de bens, cabe salientar que a imutabilidade foi mantida como regra geral pela Lei n° 10.406/02, justificando-se pela preservação do interesse dos cônjuges e do interesse de terceiros. Entretanto, o Estatuto Civil assevera que a irrevogabilidade de regime deixou de ser absoluta, uma vez que admite sua alteração, de acordo com o art. 1.639, parágrafo 2° do CC/02.

Código Civil de 1916, determinava que uma vez estabelecido o regime de bens e celebrada a união, não mais poderia este sofrer alterações, ad infinitum, regra que encontrava-se desajustada de nossa realidade social.

A Lei 10.406/02 repetiu a norma anterior, prescrevendo em seu art. 1.639, caput a seguinte redação: “é licito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quando aos seus bens, o que lhes aprouver”. Estabeleceu, ainda, no seu parágrafo 1° que o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.

Destarte, a importante inovação veio mesmo com o parágrafo 2°, do referido artigo, que possibilitou a mudança de regime de bens durante o matrimônio: ‘§ 2º É admissível alteração de regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”

Como se sabe, o regime de bens é classificado quanto à forma em: (I) convencional, ou seja, estabelecido pelas partes; (II) legal, isto é, o adotado pela lei ou pela ausência ou nulidade de declaração dos nubentes; e, (III) sanção, aquele que é imposto por força de lei. Se classificam, ainda, quanto a sua substância como: a) Comunhão parcial de bens; b) Comunhão universal de bens; c) Separação de bens; d) Participação final nos aqüestos, e, e) Separação obrigatória de bens.

Para que se possa efetivar a alteração do regime patrimonial, conforme permissivo legal do art. 1.639, parágrafo 2º, devem ser observados certos requisitos, tais como: procedimento judicial, consenso entre os cônjuges, motivação e ressalva do direito de terceiros.

Assim, pergunta-se: uma vez autorizada a alteração do regime de bens diverso da comunhão parcial pelo juiz competente será necessária a formalização de Escritura Pública de Pacto Nupcial, para que possa o regime operar seus efeitos contra terceiros?

A questão é controvertida e o tema é palpitante. Por ser a Lei n° 10.406/02 muito recente, tem causado diversos debates sobre a interpretação e alcance de suas normas.

Na presente questão há quem entenda não ser necessária a escritura pública após a alteração para os regimes que exigem o pacto como forma legal, com base no parágrafo 2º do art. 1639 que estabelece que serão feitas as alterações de regimes patrimoniais “mediante autorização judicial”, sem se reportar ao pacto, bem como pelo texto do parágrafo único do art. 1.640, que prevê a exigência de pacto antenupcial, ou seja, antes das núpcias (no processo de habilitação).

Outrossim, há quem defenda a exigência da escritura pública para a formalização da alteração de regime patrimonial entre os cônjuges, após a devida homologação judicial, tese essa corroborada pela leitura do art. 1.640, parágrafo único, parte final, que prescreve a realização de pacto através de escritura pública, quando os contraentes escolherem regime diverso do legal, ou imposto por lei, em respeito ao princípio da publicidade e da segurança jurídica, gerando então efeito perante terceiros, após o devido registro no Registro de Imóveis do domicilio dos cônjuges (art. 1657 do CC/02 e artigos 167, I, 12 e 178, V, da Lei de Registros Públicos).

Nosso entendimento é no sentido da exigência da escritura pública de pacto na ocasião da alteração de regime de bens autorizada pelo juiz competente quando for da substância do ato a escritura pública.

São inúmeras as razões que levam a exigir a realização de novo pacto, senão vejamos:

A escritura pública é da substância do ato nos pactos antenupciais, onde se convenciona acerca do regime patrimonial entre os cônjuges, e ocorrendo nulidade se não for obedecida a forma prevista em lei. Como ensina Washington Monteiro de Barros, em Curso de Direito Civil, vol. 2, Editora Saraiva: Tal é a importância do pacto antenupcial, tanta ressonância tem na vida familiar, interessando não só aos cônjuges, como aos filhos e também a terceiros, que a lei exige a escritura pública, a fim de cercá-la de toda solenidade. A escritura pública representa assim condição essencial à existência do próprio ato.”
Preenchidos os requisitos necessários para a homologação judicial (exigência de processo judicial, consensualidade, motivação e ressalva de direito de terceiros), deve ser elaborada nova escritura de pacto, para aqueles casos em que o regime alterado for diverso do regime legal e da separação obrigatória de bens, por ser da substância do ato tal forma.

Nesse sentido, o art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil de 2002 determina a possibilidade dos nubentes, optarem por qualquer dos regimes, devendo, contudo, quanto à forma, “reduzir-se a termo a opção pela comunhão parcial e fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas”. Ainda, nessa linha, o art. 1653 determina ser nulo o pacto se não for feito por escritura pública.

Portanto, deve, após a homologação judicial ser elaborada escritura pública com o novo regime adotado após a alteração, sendo posteriormente averbada no Registro Civil de Pessoas Naturais e a seguir ser efetuado o registro, com base na certidão de casamento e na escritura, no Livro 3-Registro Auxiliar, no domicilio dos cônjuges e a respectiva averbação nas matrículas dos imóveis pertencentes ao casal.

Reforça a exigência de escritura pública o princípio basilar do direito registral da publicidade, uma vez que o regime de bens adotado pelos nubentes deve ser de todos conhecido, e mais ainda, o regime alterado pelos cônjuges no transcorrer do matrimônio deve ser conhecido daqueles que com eles venham a negociar, como determina o art. 1.657 da Lei nº10.406/02:

“Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas em livro especial, pelo Oficial do Registro de Imóveis do domicilio dos cônjuges.”
Ainda, o princípio da segurança jurídica deve ser observado, pois não há efeito prático contra terceiros a alteração do regime de bens a qual estes não possam vir a conhecer. Foi nesse sentido que o art. 1.657 do Código de Normas Cíveis determinou a realização do registro em livro especial e a sua averbação correspondente.

Logo, a simples menção em sentença não é eficaz para proteger de forma robusta o direito de terceiros frente a um casal, que em conluio, possa, eventualmente, querer alterar seu regime de bens na tentativa de lesar eventual credor. Ou acredita-se que a simples publicação de edital (conhecimento ficto) possa salvaguardar direito de outrem que contrata com casal em lugar diverso ao da publicação do edital? O art. 1657 da Lei 10.406/02 determina que não.

Deve ser ressalvado o caso de alteração em que ocorre a adoção de regime de comunhão parcial, pois a publicidade determinada em lei é da simples redução a termo de tal opção. Para os demais casos, a realização de escritura pública é fundamental para sua validade.

A publicidade do novo regime adotado pelos cônjuges (alteração na constância do casamento) é tão importante quanto à publicidade do regime a ser adotado pelos nubentes (habilitação matrimonial), necessitando, portanto, da realização de escritura pública como prescreve a lei, como sendo a forma do ato, em regime de bens diverso do legal (art. 1.640, parágrafo único), e da separação obrigatória de bens, para preservar a essência da publicidade que é o resguardo de terceiros e dos próprios cônjuges, evitando assim, possíveis fraudes, minimizando eventuais demandas judiciais e aumentando a segurança jurídica das partes.

Conclui-se, portanto, que a realização de escritura pública de pacto acerca do regime de bens adotado por ocasião de alteração pelos cônjuges vem a proteger e resguardar tanto o casal, como terceiros, preservando a publicidade e segurança jurídica exigidas quando da escolha do regime de bens, além de ser requisito de formalização de regime patrimonial determinado por lei (artigos 1.639, 1.640, 1.653 e 1.657 do Código Civil).

Este é o meu entendimento, o qual submeto ao exame dos interessados para debate.

Sapucaia do Sul/março/2005.

João Pedro Lamana Paiva

Registrador e Diretor para Assuntos Legislativos da Arpen BRASIL

Daniela Beling Pinheiro

Pesquisadora

BIBLIOGRAFIA:

 CAHALI, Yussef Said. Código Civil, 5ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, 2003.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, Vol. 2, 17ª, Editora Saraiva, 1978.

PAIVA, João Pedro Lamana. Considerações sobre o regime de bens entre os cônjuges. Boletim do IRIB n°. 213, Fevereiro/2003.

RODRIGUES, Felipe Leonardo. Dos Regimes de bens, e a possibilidade de celebrar o regime misto no pacto antenupcial, Diário das Leis Imobiliário, 2° decêndio, Janeiro/2005.

VELOSO, Rodrigo Tubino. Contrato pré-nupcial só vale mediante escritura pública. Boletim Eletrônico Irib-AnoregSP. Acesso em 11 de janeiro de 2005.

Postado por Sancho Neto

Responsabilidade pessoal do Tabelião que responde pela época do ato

Predomina o entendimento jurisprudencial de que a responsabilidade do tabelião é pessoal, ou seja, não se transfere àquele que o sucede na serventia extrajudicial. Abaixo seguem os normativos pertinentes ao assunto, bem como uma ementa recente do Superior Tribunal de justiça. Vejam:
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CONSTITUIÇÃO FEDERALArt. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em  aráter privado, por delegação do Poder Público. (Regulamento)
§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
***
LEI 8.935/1994
Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.
Art. 23. A responsabilidade civil independe da criminal.
Art. 24. A responsabilidade criminal será individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a administração pública.
Parágrafo único. A individualização prevista no caput não exime os notários e os oficiais de registro de sua responsabilidade civil.
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JURISPRUDÊNCIA/STJPROCESSO CIVIL. CARTÓRIO DE NOTAS. PESSOA FORMAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RECONHECIMENTO DE FIRMA FALSIFICADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. O tabelionato não detém personalidade jurídica ou judiciária, sendo a responsabilidade pessoal do titular da serventia. No caso de dano decorrente de má prestação de serviços notariais, somente o tabelião à época dos fatos e o Estado possuem legitimidade passiva. Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp 545613/MG).


Postado por Sancho Neto



STJ - homoafetivo. reconhecimento. habilitação. casamento.


In casu, duas mulheres alegavam que mantinham relacionamento estável há três anos e requereram habilitação para o casamento junto a dois cartórios de registro civil, mas o pedido foi negado pelos respectivos titulares. Posteriormente ajuizaram pleito de habilitação para o casamento perante a vara de registros públicos e de ações especiais sob o argumento de que não haveria, no ordenamento jurídico pátrio, óbice para o casamento de pessoas do mesmo sexo. Foi-lhes negado o pedido nas instâncias ordinárias. O Min. Relator aduziu que, nos dias de hoje, diferentemente das constituições pretéritas, a concepção constitucional do casamento deve ser plural, porque plurais são as famílias; ademais, não é o casamento o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, qual seja, a proteção da pessoa humana em sua dignidade. Assim sendo, as famílias formadas por pessoas homoafetivas não são menos dignas de proteção do Estado se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. O que se deve levar em consideração é como aquele arranjo familiar deve ser levado em conta e, evidentemente, o vínculo que mais segurança jurídica confere às famílias é o casamento civil. Assim, se é o casamento civil a forma pela qual o Estado melhor protege a família e se são múltiplos os arranjos familiares reconhecidos pela CF/1988, não será negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos nubentes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas e o afeto. Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado tanto pelo STJ quanto pelo STF para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável deve ser utilizado para lhes proporcionar a via do casamento civil, ademais porque a CF determina a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º). Logo, ao prosseguir o julgamento, a Turma, por maioria, deu provimento ao recurso para afastar o óbice relativo à igualdade de sexos e determinou o prosseguimento do processo de habilitação do casamento, salvo se, por outro motivo, as recorrentes estiverem impedidas de contrair matrimônioREsp 1.183.378-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgamento em 25/10/2011.



Postado por Sancho Neto

Usucapião de Imóvel Urbano. Ausência de cadeia dominial.


USUCAPIÃO. IMÓVEL URBANO. AUSÊNCIA DE 

CADEIA DOMINIAL. TÍTULO.

A Turma reiterou que a inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva. Precedentes citados do STF: RE 86.234-MG, DJ 5/12/1976; do STJ: REsp 113.255-MT, DJ 8/5/2000, e REsp 674.558-RS, DJe 26/10/2009. REsp 964.223-RN, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/10/2011.

Postado por Sancho Neto